Hoje foi dia de realizar sonhos! A Dragão Brasil, revista que acompanhou minha adolescência e me reencontrou na vida adulta, publicou um artigo meu sobre Board Games. Aqui vai uma palhinha, mas se você quiser ter acesso ao artigo completo e ao restante da revista, participe da campanha de financiamento coletivo da Dragão Brasil, acessando https://apoia.se/dragaobrasil !
Boa leitura!
0 Comentários
Alemão sai de férias com sua namorada para a costa da Espanha, mas na verdade passa o dia inteiro jogando um Board Game com um cara cheio de queimaduras e que aluga pedalinhos. Ah, tem morte, infidelidade e nazismo envolvido também. Se interessou? Veja aqui um comentário sobre O Terceiro Reich, livro do premiado autor e War Gamer chileno Roberto Bolaño. O que te faz jogar Board Games? É o momento de abrir a caixa que te emociona? Ou será montar o tabuleiro? Talvez seja o prazer em explicar as regras e ver que as pessoas entenderam o jogo e estão se divertindo. Outros jogam horas a fio esperando aquele momento decisivo no qual uma jogada vai fazer toda a diferença. Talvez você só goste mesmo é de rolar dados e ficar feliz com um resultado positivo ou simplesmente estar rodeado de amigos dividindo uma atividade e rindo junto. Eu conheço até gente que gosta mesmo é de destacar os tokens antes de botar um jogo pela primeira vez na mesa. Me propus hoje a pensar nesta pergunta usando um livro que me marcou bastante: O Terceiro Reich. Seu autor é o reconhecido escritor chileno Roberto Bolaño, autor de Detetives Selvagens e de 2666. O Terceiro Reich é um livro escrito em forma de diário, redigido em 1989, mas só publicado postumamente em 2010 com a autorização de sua herdeira, Carolina López. Ela comenta que Bolaño adorava jogos, especialmente War Games, e que passava madrugadas jogando com seu filho Lautaro. O fã de Board Game que ler este livro se deparará com páginas e páginas de descrições detalhadas de jogadas, o que deve ser um martírio para quem nunca abriu um jogo de tabuleiro, mas configura, sem dúvida, um brinde aos apaixonados por Meeples e dados. A genialidade de Bolaño ao intercalar as jogadas com os comentários dos personagens e usar o próprio meta-jogo como pano de fundo da narrativa é, sem dúvida o ponto forte do romance. Pensou que fosse o criador do Chaves e do Chapolin, não é? Se enganou. Neste livro, Udo Berger sai de férias com a sua namorada Ingeborg, fã de romances policiais, para um hotel comandado pela competente e cativante Sra. Else no qual ele costumava passar as férias quando criança na costa da Catalunha. Na bagagem, Udo leva uma cópia do jogo de tabuleiro Third Reich, um War Game de tabuleiro da Avalon Hill que simula os conflitos do eixo e dos aliados do começo ao fim da Segunda Guerra Mundial. Quem nunca levou seu jogo preferido para as férias com a expectativa de jogar nem que seja uma vez, mas no final só fez foi entrar areia na caixa? Udo, ao contrário de todos nós, consegue colocar seu plano em prática. Nos primeiros dias de férias, ele encontra um equilíbrio entre curtir a praia com sua namorada e jogar solo no quarto. Jogar solo? Aí é um pouco exagerado você estará pensando. E com razão, porque eu ainda não disse que Udo Berger é campeão alemão de Third Reich e escreve para várias revistas de War Games. Aquilo ali, na verdade, é também parte do seu trabalho. Ele está ali para testar as diferentes variantes estratégicas que a sua nova abertura proporciona.
Na primeira semana, Udo e Ingeborg conhecem um outro casal alemão, Charly e Hanna, esses sim exemplares típicos da fauna dos resorts europeus. Ele, um surfista meio grosseirão e ela, uma patricinha de cidade pequena. Udo não simpatiza muito com o casal, mas Ingeborg desenvolve uma rápida amizade com os dois, o que dá mais tempo para Udo jogar, já que Ingeborg acaba saindo mais com os novos amigos. Há mais três personagens importantes no romance, El Lobo e El Cordero, dois malandros que povoam os bares da cidadezinha urubuzando a vida dos turistas para preencherem suas próprias vidas. Ingeborg e o casal se aproximam deles, com participação intermitente de Udo, indo a discotecas mais afastadas da cidade, frequentando bares e fazendo passeios com os dois pois sentem prazer em sentir aquela tensão de não saber se é completamente seguro andar naquela companhia. Essa tensão nem existe para Udo, que não demonstra interesse por essas experiências. Seu olhar se volta para um castelo na praia. É um castelo feito de pedalinhos. Todas as noites, o dono dos veículos monta uma fortaleza de pedalinhos em forma de estrela e a usa como dormitório. Ninguém, além de Udo, parece perceber isso. Fascinado, ele busca entrar em contato com aquele homem. De longe, os alemães já haviam percebido que o homem tinha sofrido algum acidente e boa parte de seu corpo estava completamente queimado. De perto, tudo aquilo parecia mais asqueroso e surreal. A carne viva retorcida brilhava com a camada de água salgada refletida pela sol. Udo fica cada vez mais interessado e desenvolve uma amizade com o Queimado, enquanto Ingeborg sai em suas aventuras de verão. Este é o setup do romance, onde todas as peças são postas e as motivações dos personagens apresentadas. O evento que define o desenrolar da trama é a morte misteriosa de um dos personagens. Sem saber explicar o porquê, Udo decide permanecer no hotel e convida o Queimado para ser seu oponente no Third Reich. A partir deste ponto, o jogo se transforma em um espelho das ações do narrador e o seu caminho de desligamento da realidade toma proporções insólitas. No entanto, não é sobre o fim do livro que eu quero falar e sim sobre as motivações básicas de Udo e a sua relação com os Board Games. Udo, o jogador Até ali, Udo havia sido perguntado várias vezes porque tinha levado aquele jogo para as férias e porque passava tanto tempo ocupado com ele e não ia para a praia se divertir como todo mundo. Para cada interpelação, uma reação. Aos funcionários ele diz que não era da conta deles, Com o casal alemão ele percebe que Ingeborg tem tanta vergonha disso que prefere se calar e para a Sra. Else, por quem ele tem um sentimento represado desde criança, ele tenta mostrar como aquilo é sério falando de seu título de campeão nacional e das revistas para as quais escreve. Só com o Queimado ele consegue falar do jogo em si, do prazer em imaginar estratégias, que ele desenha na areia para demonstrá-las ao seu interlocutor. Udo não joga qualquer coisa. Ele é um War Gamer. Trata-se de um entusiasta da rigidez das regras, um ideólogo dos hexágonos. Third Reich é um jogo complexo (o jogo recebeu o nível de complexidade 4.3 de 5 no BGG). Sua personalidade gamer é justa, pois faz de tudo para que seu oponente aprenda todas as regras de maneira correta, porém extremamente competitiva. Ele vê na precisão do formato fechado do jogo de tabuleiro a maneira de expressar a sua visão de mundo. Ao desenvolver aberturas e estratégias que transformam o jogo, Udo quer quebrar o jogo, mas ele só tem interesse em fazer isso se for por dentro, usando as regras do manual. Algumas vezes no romance, ele opõe os War Games ao RPG, jogo de interpretação de personagens, o que nos modernos grupos de Facebook seria considerado uma bela de uma treta. Criticando fanzines de War Games feitos por jovens ele diz: Não passam de fotocópias porcas de fichários rabiscados por jovens que mais têm a ver com RPGs e até mesmo com jogos de computador do que com a rigidez de um tabuleiro hexagonal. E depois, expõe sua opinião geral sobre RPGs: Em uma Europa desmemoriada e sem heroísmos épicos não me surpreende que os jovens de hoje em dia sejam convertidos para jogar Dungeons & Dragons e outros RPGs... Pessoalmente, só tenho a discordar, pois a minha escola de Game Design foram o AD&D por me mostrar que um jogo pode ser complexo e, ao mesmo tempo divertido, e a Dragão Brasil que me ensinou que qualquer tema ou história, por mais esdrúxula que fosse, poderia ser jogável. Mas estas afirmações nos ajudam a entender porque Udo joga. O Alemão não está interessado em uma experiência lúdica aberta em que as regras só existam para auxiliar a experiência cooperativa e narrativa. Ele joga War Games porque vê dentro do universo limitado e complexo das regras feitas para aquela experiência a oportunidade de medir-se em competição justa com outras pessoas em busca do mesmo objetivo: Vencer. Vencer o oponente, sim. Mas, antes de tudo, vencer o jogo. Superar as próprias regras da vida usando somente seu próprio espírito e inteligência. Esta pode ser a motivação pessoal de Udo para jogar, mas ela não explica sozinha sua paixão pelo hobby. Poucas pessoas entendem o mundo desse jeito. Por esta razão, Udo sente-se sozinho. Este tipo de experiência só faz sentido se compartilhada. Além dos personagens descritos acima, Udo tem um grande amigo na Alemanha, Conrad, que o introduziu no mundo dos War Games e assume o papel de mentor. Além disso, ele joga uma partida por via postal com o campeão americano de Third Reich, Douglas Rex. Estes personagens, apesar de não aparecerem fisicamente no romance, ocupam um papel importantíssimo na construção do personagem de Udo. Como vemos nesta passagem, na qual Udo comenta uma carta de Conrad em que ele fala sobre uma noite de jogatina em Stuttgart comentando algumas jogadas, especialmente as péssimas jogadas de um amigo em comum, Wolfgang. Udo escreve: Wolfgang é um idiota: eu só fico pensando na sua lerdeza, na sua indecisão, na sua falta de imaginação. Quando não é possível controlar a Turquia com Diplomacia, você tem que invadir, seu imbecil! Nick Palmer já disse isso mil vezes. Eu já disse isso mil vezes. De repente, do nada, me veio sensação de que eu estou sozinho. De que somente Conrad e Rex Douglas (a quem eu só conheço por cartas) são meus amigos. Todo o resto é vazio e escuridão. Chamados aos quais ninguém responde. Vegetais. "Sozinho em terra deserta" me vem à cabeça. Udo se sente sozinho. Ao criticar a jogada de não anexar a Turquia jogando com a União Soviética, ele polariza seu sentimento de individualidade, se isolando, inclusive, das pessoas que gostam do jogo. Ele sente que só duas pessoas entendem o que se passa pela sua cabeça. Aqui, vemos que a esfera individual de sua paixão se encontra com a esfera social. Ele não está sozinho. Ele tem Conrad e Douglas que, nesse aspecto da sua vida, o compreendem. Udo, acima de tudo, quer ser compreendido, afinal quem não quer? Por isso ele se interessa pelo Queimado, pois este personagem se interessa pela sua paixão e vai usá-la, com o desenrolar do romance, para expressar o seu próprio papel na história. Vejo Udo como uma pessoa que viu no hobby uma de várias possíveis maneiras de encontrar sentido na vida e que, por meio da sua paixão, consegue encontrar-se entre amigos e dividir experiências. Afinal, aprender a lidar com as suas paixões é, ultimamente, a missão de cada um. A sequência trágica de Udo em sua relação com o Queimado e com a Sra. Elsa canalizam uma possibilidade de verticalização da experiência humana, pois vemos que Udo resume vários aspectos da sua vida às jogadas do Third Reich. Dentro do seu fascínio, que é comparável com o fascínio pelo fazer artístico, Udo acaba se perdendo. Os críticos deste livro tendem a ver Udo como um inepto social que põe em xeque sua vida por causa de um joguinho. Ele é visto como um obcecado que por meio do jogo atravessa o pesadelo da vida. A segunda parte do romance realmente mostra um comportamento obcecado, mas isto é, na minha visão, muito mais um desenvolvimento do conjunto de eventos trágicos e decisões dos personagens envolvidos do que só da relação de Udo com os Board Games. Reduzir toda a existência trágica de Udo à sua paixão pelos jogos seria simplista e Bolaño não era simplista. A vida, afinal, não costuma respeitar a rigidez dos hexágonos. Bom, talvez tenhamos aprendido um pouco do porque Udo joga. E você, por que joga? Abraços e até a próxima! |
AutorPedro Martins joga o que aparecer pela frente, gosta de línguas modernas e antigas e de fazer seus próprios jogos. Histórico
Janeiro 2018
Categorias
|